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Paulo Bertran

 

Um dia, no Sertão, O Estio,

Vira Boi e Poesia.

(BERTRAN, 1998, p. 107)

 

Nascido em Anápolis, Goiás, em 21 de outubro de 1948, Paulo Bertran Wirth Chaibub tornou-se um importante historiador, economista e poeta de Goiás e do Distrito Federal, ao escavar tesouros por muito tempo escondidos sob a dura terra do Planalto Central e sob pilhas de velhos papéis nos cartórios e paróquias de Goiás e de além-mar, tendo revirado os arquivos da Torre do Tombo e no Arquivo Ultramarino de Lisboa.

Além de historiador, economista e poeta, Bertran foi também, mais informalmente, pianista e pintor, e, ao longo de sua vida, foi professor na Universidade de Brasília e nas Universidades Católica e Federal de Goiás; foi co-fundador do Centro de Produção Cultural e Educativa (CPCE), na UnB; foi fundador e diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC); e diretor da Sociedade Goiana de Cultura, da Universidade Católica de Goiás. Bertran foi também membro da Academia de Letras e Artes do Planalto, em Luziânia-GO, e das Academias Pirenopolina de Letras; Brasiliense de Letras; e Goianiense de Letras, assim como dos Institutos Históricos do Distrito Federal, de Goiás e de São Paulo. Além disso, participou da criação da revista DF-Letras, dentre outras publicações.

Bertran apresentou dados inéditos a respeito da história de Goiás através de rigorosa pesquisa de campo, refazendo as trilhas dos bandeirantes e revelando seus passos. Através de seus poemas e sua escrita sensível da história, com uma visão voltada para as pessoas comuns e suas vidas em meio aos cerrados, trouxe à tona uma poética e uma mitopoética dos sertões que se obscureceu e foi levada ao esquecimento com a chegada de cidades como Goiânia e Brasília.

Bertran era neto de imigrantes – um avô suíço casado com uma uruguaia de ascendência basca, pelo ramo materno, e um avô libanês casado com uma brasileira de família tradicional goiana, pelo ramo paterno. Os patriarcas vieram de suas terras natais em busca de vidas melhores em terras tupiniquim, e acabaram ambas as famílias, Wirth e Chaibub, se encontrando no interior de Goiás, região que trazia a promessa de prosperidade em vista de seu crescente desenvolvimento. Por obra do destino ou do acaso, encontraram-se Maria Helena Wirth e Tufi Chaibub, que se

enamora imediatamente pela jovem loira de olhos azuis, e lhe conquista na mesma noite através de um poema rabiscado num pedaço de papel (que Helena levou décadas a descobrir não ser de autoria do próprio Tufi…). Como escreveu Paulo: “O velho Tufi adorava imaginar-se como o mouro de Veneza, frente à loura Desdêmona suíça”. Entre idas e vindas, o casal provaria ao longo de anos seu desejo comum de união, enquanto Tufi buscava cair nas graças do sogro suíço que o via com desconfiança. Logo, a desconfiança foi substituída por afeto e respeito mútuo, que cresceu com os anos após o casamento de Tufi e Helena, em dezembro de 1946.

Quase dois anos depois, nasce Paulo. Para registrar a criança recém-nascida, foram ao cartório o pai Tufi e o avô Jean-Jacques, o suíço, e por decisão unânime (e sem consultar a mãe Helena), lhe colocaram o nome “Bertran” – homenagem, pelo lado de seu pai, ao filósofo Bertrand Russell, de quem era adepto – e pelo lado de seu avô, ao general de Napoleão, Henri-Gatien Bertrand, que se dizia ser um antepassado direto ou indireto do lado maternal de Jean-Jacques. O “d” suprimiram segundo o modismo ortográfico da época. “Paulo Bertran”, portanto, era nome composto, e antes de adotá-lo como nome artístico, Paulo assinava em seus artigos na França como “Paulo Wirth- Chaibub”. Porém, por sugestão de seu editor, Taylor Oriente, na época da publicação de seu primeiro livro, em 1978, decide adotar o nome de autor “Paulo Bertran”. Assim, passou para os filhos “um novo nome de família, reduzido, abrasileirado, fácil de guardar e de escrever: Bertran”, como escreveu em suas anotações de genealogia e histórias de família.

Em dezembro de 1951, morando em Anápolis, Bertran ganhou o primeiro irmão, Jean-Jacques, batizado segundo o avô materno. Em outubro de 1955, nasce o caçula, Luciano. Paulo tinha na época sete anos de idade, e já havia iniciado sua formação acadêmica ouvindo histórias de seu pai e seu avô Jean-Jacques. Com a avó Casilda, uruguaia, aprendeu a tocar piano, talento que mais tarde viria a animar suas noites em bares e restaurantes de Brasília, onde fazia alguns trocados que o sustentaram nos tempos de universidade. Realizou também saraus musicais e poéticos reunindo amigos em sua casa em Brasília, ao lado do Memorial das Idades do Brasil, sua última grande realização.

Bertran era um aluno dedicado, carregando o gosto pelos estudos e sobretudo pela história que o pai e o avô lhe haviam introjetado. Gosto que se desenvolveu ao longo dos anos, tornando-o um dos mais renomados pesquisadores da história de Goiás. Porém, sempre teve também um lado carismático, e para sua festa de formatura do curso do clássico (antigo ensino médio) do Liceu de Goiânia, em dezembro de 1967, após assistir a uma apresentação de Maria Bethânia no Cine-Teatro Goiânia, Paulo se aproximou da cantora para lhe convidar à festa que ocorreria em sua casa, onde os pais Tufi e Helena se esconderam toda noite no quarto para evitar constrangimentos aos jovens formandos. Bethânia, de fato, compareceu à festa, causando euforia nos presentes.

Já formado, Bertran escolhe fazer vestibular para o curso de Direito na Universidade Federal de Goiás, em 1968. Após um ano, porém, abandona o curso e passa em novo vestibular para Economia, dessa vez na UnB. Conclui o curso, porém, sua grande paixão e vocação sempre foi a história. Já casado, com Sulamita Costa, Paulo consegue bolsa na Universidade de Estrasburgo, França, para fazer uma pós-graduação em Economia. Ao retornar, vai morar em Goiânia, onde nasce seu primogênito, João Frederico, em outubro de 1975. Em Goiânia, escreve sua primeira obra, Formação Econômica de Goiás, de 1978, cujo estilo de escrita rígido e burocrático viria a abandonar. Com essa obra já era notável sua inclinação para a história, e assinava pela primeira vez como “Paulo Bertran”.

Brincando com a etimologia do nome, que sem querer pode revelar muito sobre uma pessoa, temos em Paulo Bertran um “humilde sábio”, e trazendo de volta os sobrenomes que Bertran omitiu, “Wirth Chaibub”, temos um “provedor intrépido”. O nome germano-suíço “Wirth” é o mesmo que “provedor” ou “chefe da casa”. “Chaibub”, por sua vez, é o nome do inseparável e corajoso ajudante e meio-irmão de Antar, herói das lendas árabes. Diz-se, nas histórias de família, que um tio bisavô de Bertran teria lutado sozinho contra quatro soldados turcos mulçumanos em recusa pelo alistamento obrigatório, e tendo vencido a luta, até dado momento, foi salvo por um oficial que ordenou o fim da briga, gritando: “Parem! Esse homem é um Chaibub!”. Com esse honroso batismo, o nome teria sido adotado por parte da família Cecílio Elias, sendo passado para nossa linhagem.

Afinal, com a etimologia completa, temos em “Paulo Bertran Wirth Chaibub”, um “humilde sábio e provedor intrépido”, que desbravou o Cerrado do Planalto Central, sua casa, em busca de prover história e poesia a uma terra negligenciada pela historiografia brasileira, assim como pelas políticas públicas e ambientais.

Refazendo as trilhas das Estradas Coloniais, abertas por indígenas e por bandeirantes como os Anhangueras e Urbano do Couto, Bertran desenterrou muitos tesouros – não o ouro, que foi quase todo levado embora, mas algo muito mais valioso – a ancestralidade do Cerrado e do povo cerratense. De todo modo, para Paulo, seus maiores tesouros eram a boa relação com familiares e amigos, e, em especial, os filhos que trouxe ao mundo.

Em maio de 1980 nasce sua filha, Maria Paula, e, pouco tempo depois, se separa da esposa. Nos anos que seguem, publica dois livros: Memória de Niquelândia, de 1985, reeditada e ampliada como História de Niquelândia: do Julgado de Traíras ao Lago de Serra da Mesa, em 1998 e 2002; e Introdução à História Econômica do Centro-Oeste do Brasil, de 1988. No ano seguinte, Bertran recebe o Prêmio Literário do Instituto Nacional do Livro. Ao escrever essas obras, Bertran já era mais historiador que economista e adota uma escrita mais leve, poética e idiossincrática. Suas pesquisas no campo acadêmico, entre trilhas, serras e montes de arquivos, eram um projeto de vida. Como escreveu o jornalista Jaime Sautchuk (2012, p. 34), grande amigo de Bertran: “Ele costumava dizer que era formado nas ‘dilatadas universidades do sertão’, parafraseando um cronista que, no século XVIII, dissera o mesmo do bandeirante Anhanguera”.

Ainda em 1988, após a venda da fazenda da família, “Araés” (batizada segundo um povo indígena da região, na época parte de Goiás, atualmente parte de Tocantins), Bertran dedica-se a outra fazenda, herdada de seu pai, falecido em 1984. Nesta propriedade, no município de Corumbá, Goiás, batizada como Fazenda do Assombrado (em razão de um morro dali, onde caiam raios e dançavam fogos-fátuos), Bertran cria gado curraleiro, mais pelo valor poético e histórico do que econômico – como observou o amigo de longa data, Wagner Gonçalves – e faz experimentações arquitetônicas com construção de barro, com base nas antigas casas coloniais.

Em julho de 1987, nasce seu filho caçula, André Gustavo, que teve junto a Miriam Machado, colega do curso de Economia e amiga de toda a vida. E assim se completava a “bertranzada”, como ele diria, instaurando um novo sobrenome no Planalto Central. Em fevereiro de 1990, nasce o sobrinho de Bertran – eu – que aqui escrevo sobre meu tio, pois afinal, antes de admirar Paulo Bertran como historiador e poeta, o conheci e o amei como tio e padrinho, cujo carisma encantava e cujo afeto e alegria contagiava.

Lembro-me quando pequeno fazia visitas à Fazenda do Assombrado, onde Paulo levava os filhos e sobrinhos para andar de cavalo e passear pelo cerrado. Encontrando certa pedra no caminho, mostrava como se produziam fagulhas chocando as tais pedras – tecnologia pré-histórica para acender fogueiras. Dentro do casarão, que construiu com portas e janelas compradas de uma casa em demolição em Pirenópolis, mostrava sua coleção de machadinhas e pedras lascadas, dentre

tantos outros artefatos pré-históricos, indígenas e da era colonial, que havia encontrado ou adquirido em suas trilhas e pesquisas. Nesta época sua companheira era Ana Sudário, que foi também sua amiga até o fim da vida.

Em seu piano, herdado da avó Casilda, tocava com habilidade, e não fazia caso das crianças tocarem também, com caóticos e pesados dedos. Certa tarde nublada, eu, minhas irmãs e primos, fizemos uma sinfonia tempestuosa, balançando de um lado ao outro compridos “chocalhos de chuva” indígenas, enquanto martelávamos no teclado estrondos como trovões. Sem nos dar conta, aprendíamos a evocar as águas. E Paulo observava, sempre com um sorriso sincero, paciente, com um ar de humilde sabedoria.

Infelizmente, antes que viesse a conhecer Bertran, o historiador, eu veria meu tio, que muito amava, tornar-se parte da história. Ao escrever essa pequena biografia, relembro meu tio Paulo, e conheço cada vez mais o grande historiador e poeta do Planalto Central, cuja carreira impressiona pela quantidade de projetos e realizações de imensa importância à historiografia e à cultura goiana e cerratense em geral. Dentre tantos projetos, Bertran se responsabilizou, quando ainda era diretor do IPEHBC, pela elaboração do Projeto Resgate da Documentação Histórica da Capitania de Goiás no Arquivo Ultramarino de Lisboa, que foi realizado no âmbito do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, do Ministério da Cultura. Este projeto trouxe toda a documentação colonial goiana para Goiás, fornecendo aos historiadores da região inúmeras informações acerca de Goiás no séc. XVIII e começo do séc. XIX. Bertran tinha o grande sonho de trazer para o estado cópias da documentação disponível em Lisboa. O projeto, porém, só teve início em agosto de 1998, após ter deixado seu cargo no IPEHBC em razão de sua mudança para Brasília.

Em 1994, Bertran realiza uma apresentação sobre o mito do Roteiro do Ouro do Urbano, um roteiro escrito pelo bandeirante Urbano de Couto Menezes, no séc. XVIII, que apontava para supostas minas de ouro na região de Sobradinho-DF – uma das primeiras lendas locais. No mesmo ano, publica sua mais compreensiva obra, História da Terra e do Homem no Planalto Central: Eco- história do Distrito Federal – do indígena ao colonizador (reeditada em 2000 e 2011), em que utiliza de transversalidade e interdisciplinaridade para abordar a história do Planalto Central desde a formação das rochas, de até um bilhão de anos; passando pela evolução do Cerrado, de dezenas de milhões de anos; até a ocupação humana pré-histórica, de pelo menos 12 mil anos; antes de apresentar a história propriamente dita, que se inicia com a colonização de Goiás no início do século XVIII.

Nesta obra única, introduz os termos “cerratense” e “Homo cerratensis” para se referir ao tipo humano culturalmente adaptado ao Cerrado, que tem sua primeira forma no indígena, e em seguida na população miscigenada – lusitana, africana e indígena – que se cria com o violento e ambientalmente desastroso processo de colonização. Porém, ao longo das gerações, o habitante colonial se adapta à vida no Cerrado, desenvolvendo culturas e cosmologias próprias, em harmonia com seu meio ambiente. Com a construção de Goiânia e Brasília, no entanto, modela-se um novo Homo cerratensis que cresce em meio ao concreto, desconectado do Cerrado – que rapidamente desvanece ao seu redor. Será a sina desse novo Homo cerratensis trabalhar infindamente pela reconexão com o Cerrado. “Assim, desde já incorpora o novo Sísifo, o que eternamente carregará pedras até o topo da serra em que se oculta sua recôndita natureza: o cerrado. O reino das Oréades”, como escreveu Bertran (2011, p. 61). Um ano após a publicação de História da Terra e do Homem, Bertran ganha o Prêmio Clio de História, da Academia Paulistana de História.

Uma valiosa contribuição à historiografia goiana foi a publicação, em 1997, de Notícia Geral da Capitania de Goiás, documento histórico redigido por vários autores em 1783, e perdido entre velhos documentos até que Bertran o encontrou, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em 1983. Outros documentos, também inéditos, encontrou no Museu da Torre do Tombo e no Arquivo Ultramarino, em Lisboa, Portugal. Vasculhou também arquivos de São Paulo e do interior do Goiás, inclusive na própria Cidade de Goiás, antiga Vila Boa, fundada em 1726 por Anhanguera II, bandeirante cujos passos Bertran refez, chegando até Vila Bela, oeste do Mato Grosso, onde Anhanguera se estendeu em busca não apenas do ouro, mas também de assegurar à Portugal a posse de terras para além do determinado pelo tratado de Tordesilhas. Bertran também demarcou, no centro da praça onde se localiza a Igreja de Olhos d’Água, a 72 km oeste da Praça dos Três Poderes, em Brasília, o local por onde passava a desrespeitada linha de Tordesilhas.

Paulo, que sempre escrevia à mão, dedicou-se à poesia quase tanto quanto à história, e em 1998 lança seu primeiro livro de poemas, Cerratenses. Essa obra divide-se em três tomos: Das Oréades e do Cerratossauro; Vãos e Serras Gerais; e Dos Mares de Chapadas. E ainda continua em um Índice: topográfico, remissivo e ornitorrinco, que nada mais é do que mais poesia. Em seus poemas canta o Cerrado, o Goiás e a Brasília que vivem tanto fora quanto dentro de todos nós. Além da poesia, Bertran também trabalhou em pesquisas e roteiros de cinema, junto à sua amiga, a cineasta Tânia Montoro, com quem escreveu os roteiros para os documentários Divinas Marias, Anzóis Trocados e Hollywood no Cerrado.

O eixo central da obra de Bertran, histórica e poética, é o Cerrado – sua natureza, sua eco-história, suas culturas e seus povos. Como historiador, Bertran era um grande poeta, e como poeta, um grande historiador. Sua poesia se fazia das histórias que coletava aqui e acolá – histórias pessoais, de família, de Goiás. Bertran sabia que não havia história objetiva, que história se interpreta e se escolhe, e ele escolhia voltar seus olhos às pessoas comuns, ao interior, ao meio ambiente. Pois sabia que era de gente, de terra, rocha e natureza, que se faz história, poesia e o próprio Cerrado.

 

Mãe-Terra que me implantas,
sou teu filho,
Paulo. E teu amante.

Paulojardim das montanhas claras
Paulopalanto dos ribeiros dos campos…
E daquela luz que se espalha
verberante no teu ar de festas,
poeiras e libélulas douradas no ar do sol.

Teu Paulocanela que te Ema
e desvanece no ar de amor.

(BERTRAN, 1998, p. 109)

 

Bertran travou árdua batalha para corrigir um grande erro da Constituição de 1988, que deixou de fora o Cerrado no capítulo a respeito de políticas ambientais. Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei para estender prioridade ao Cerrado na captação de investimentos do Fundo Nacional de Meio Ambiente, porém, a política atual tem sido uma de destruição e negação da ciência e da natureza, e o Cerrado continua a ser visto como área de expansão econômica, baseada na exploração insustentável da terra e de seus recursos naturais. A batalha por sua preservação e proteção torna-se cada vez mais árdua, enquanto as chances de recuperação do bioma minguam.

Porém, diante de qualquer adversidade, Bertran sempre encarava a vida com esperança e humor, estando acostumado, desde o nascimento, a ter a “corda enrolada no pescoço”, ou na ocasião, o cordão umbilical. As adversidades financeiras foram presentes durante toda a sua vida, porém nunca desanimava, e contra a descrença de muitos, com frequência realizava seus projetos mais “sem pé nem cabeça”, com recursos que de algum modo encontrava quando precisava.

No ano de 2002, quando publica o livro Goiás: 1722-2002, trazendo novos dados a respeito da história de Goiás, sobretudo do leste do estado, Bertran também funda o Memorial das Idades do Brasil, um museu a céu aberto em uma chácara em Brasília, entre o Paranoá e o Setor de Mansões do Lago Norte. No Memorial há um enorme paredão de rocha, formado quando dali se removeram pedras para a construção da barragem do lago Paranoá. Este paredão é palco de reproduções da arte rupestre de todo o Brasil, criadas por um artista a pedido de Bertran, que proveu as fotografias e desenhos, coletadas em mais de 15 anos de pesquisa.

Bertran obteve os recursos para construir as edificações do Memorial ao vender a Fazenda do Assombrado, obra realizada junto à sua companheira e grande amor dos anos finais de sua vida, a educadora Graça Fleury (que por curiosidade do destino é também minha parente, prima de minha avó materna, a professora e poetisa Terezy Fleuri de Godoi). Paulo e Graça fundaram, junto ao Memorial, o Instituto Bertran Fleury, que é ainda hoje administrado por Graça, com sede atualmente na Cidade de Goiás, ao lado da casa Dona Sinhá, onde fica também o Memorial Paulo Bertran.

Paulo conheceu Graça em 31 de março de 2001, quando completava as pesquisas de mais de dez anos para a obra fotográfica Cidade de Goiás, Patrimônio da Humanidade: Origens, realizada em parceria com Rui Faquini e publicada em 2004. Foi Paulo o principal realizador das pesquisas e levantamentos que viabilizaram o tombamento da Cidade de Goiás como Patrimônio Cultural da Humanidade, pela UNESCO. Após construírem juntos o Memorial e fundarem o Instituto Bertran Fleury, Paulo e Graça publicaram, em 2004, o livro Memorial das Idades do Brasil, que serve de guia de visitação ao espaço, além de reunir informações acerca do Cerrado, desde da formação das rochas, passando pela transformação da natureza, até a chegado do ser humano, primeiro o indígena e em seguida o colonizador. O Memorial revela uma história de um bilhão de anos na região do Planalto Central, e que em muito eclipsa as poucas décadas das construções de Brasília e Goiânia.

O Memorial das Idades do Brasil foi a última grande obra de Bertran ainda em vida – decorrência de décadas de diligente pesquisa, que o levaram ao desejo de fundar um lugar em que os habitantes do Distrito Federal pudessem conhecer a geo-história, a eco-história e a pré-história dos cerrados do Planalto Central. Embora possua representações da arte rupestre de 21 estados brasileiros, dá destaque à arte pré-histórica no Cerrado, abundante em Serranópolis e outras regiões de Goiás, datadas de algumas centenas a até 12 mil anos.

Bertran deixou inconcluso alguns trabalhos, como as pesquisas sobre a Cidade de Pedra, ou Perdida, dos Pirineus, próximo a Pirenópolis – grandes formações rochosas semelhantes a ruínas que encontrou em velhos mapas e fotografou em visitas ao local. Sinto grande arrependimento por ter perdido a oportunidade de me juntar a meu tio em uma expedição à Cidade de Pedra, sem saber que seria a única… A visitei muitos anos depois, pensando se não estaria pisando por onde Paulo passou.

Subindo a Serra Dourada, num 4×4 recém comprado, em busca de outra cidade de pedras perdida, que buscava com base em fotografias tiradas pelo avô de Graça em 1914, Paulo viveu sua última aventura, junto do amigo Bismarque Villa Real. Na noite após a busca, sofre um enfarto, e dias depois, em 2 de outubro de 2005, retorna ao Cerrado o espírito de Paulo Bertran – o cerratense – historiador e poeta do Planalto Central, descendente de Anhanguera (dizem as modernas genealogias da família), que fez, porém, o caminho inverso do temível bandeirante, devolvendo à terra e ao povo seus tesouros, trazendo de volta de além-mar a história que esta terra havia perdido.

Pouco após o falecimento de Bertran, foi lançado o livro Palmeiras de Goiás, e em 2007, foi publicada a coletânea completa de poesias intitulada Sertão do Campo Aberto, antigo nome do Distrito Federal e adjacências. Ambos os livros foram finalizados por Graça Fleury. Em 2008 é fundado o Memorial Paulo Bertran, no Instituto Bertran Fleury, em Goiás Velho, com um painel de azulejos comemorando Bertran, suas descobertas e suas paixões – o Cerrado e sua eco-história. No Memorial das Idades do Brasil foi realizado painel semelhante, transformando o espaço em um lugar reservado não somente à história da terra, mas também do grande homem que a desvendou. Esses painéis foram feitos sob encomenda de Graça Fleury e de Maria Helena Chaibub, mãe de Bertran, que dedicou os últimos anos de vida desde o falecimento do filho à preservação de sua memória e sua obra.

Graças aos esforços de minha avó Helena, meu tio Paulo ganhou o Prêmio Brasileiro Imortal, da Companhia Vale. Ganhou também o Troféu in memorian Chama Viva, da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás (AFLAG), que publicou uma coletânea de homenagens a ele. Outra obra em sua homenagem foi o livro Paulo Bertran – o Cerratense, de 2012, com textos de Jaime Sautchuk. Bertran também recebeu postumamente, ainda em 2005, a Medalha da Ordem do Mérito Anhanguera, e em 2011, o Prêmio Altamiro de Moura Pacheco (comenda Araguaia, Assembleia Legislativa de Goiás) e a Comenda Padre Silvestre Álvares da Silva (prefeitura de Jaraguá, Goiás). Bertran é ainda homenageado no nome das bibliotecas da Câmara Legislativa de Brasília e do Centro Cultural Oscar Niemeyer, em Goiânia. No Jardim Botânico de Brasília, Bertran é lembrado no Memorial dos Cerratenses, junto a grandes nomes como Laïs Aderne e Pajé Sapaim.

Em 2017, pouco antes de vir a falecer, minha avó Helena havia cumprido sua última missão pela memória do filho, ao abrir a Casa Paulo Bertran em sua casa em Goiânia, onde Bertran cresceu. Eu, por minha vez, defendi, em 2021, uma dissertação de mestrado homenageando Bertran no dia de seu aniversário, apresentando uma obra de arte e poesia que conta um novo mito do Cerrado, uma mitopoética cerratense, inspirada na obra poética e eco-histórica de Bertran. Pelo incentivo de minha avó Helena, e especialmente, por ter me apaixonado pela obra de meu tio, desejo continuar o legado por ele deixado, trabalhando com arte e educação no bioma Cerrado em prol da valorização da terra, da natureza e das culturas a elas ligadas. O grande sonho de minha avó Helena, e agora o meu, é ver o Memorial das Idades do Brasil voltar a receber visitas de estudantes e curiosos.

Paulo é atemporal, como sua obra, que jamais se rendeu às limitações disciplinares e a recortes do tempo, que não se pode desmembrar sem perder o sentido. Passado, presente e futuro coexistem na obra de Bertran, como coexistem, de fato, na natureza e na experiência humana. Coexistem também, num mesmo instante, nos mitos de origem das sociedades tradicionais. Bertran inventou uma mitopoética dos cerrados que se desdobra sobre si, num tempo uno, que faz do futuro o eterno retorno do Cerrado original. Através de sua eco-história e sua poesia, vislumbramos um futuro possível para o Cerrado e seus habitantes – os Homo cerratensis.

 

 

Certas gerações, entremeadas,
fizeram-se só pelo amor ao amor.

Outras, nefandas e desnecessárias,
pelo amor da guerra e dos assassinatos
Eu seria, pelo amor à Terra e aos Frutos gentis,
um simples hortelão transmontano,
um Zen do Altiplano,

Catando a última excreção da Vaca amiga,
para depositá-la, seca e densa,
na derradeira roseira do sertão.

(BERTRAN, 1998, p. 105)

 

 

Texto/pesquisa: Thiago Chaibub
Referências Bibliográficas:
Anotações manuscritas de genealogia e histórias de família de Paulo Bertran.
BERTRAN, Paulo. Cerratenses. Brasília: Verano, 1998.
BERTRAN, Paulo. História da Terra e do Homem no Planalto Central: eco-história do Distrito Federal – do indígena ao colonizador. Brasília: Editora UnB, 2011.
FLEURY, Graça (coord.). Troféu in Memorian: Homenagens a Paulo Bertran. AFLAG. Goiânia: Kelps, 2005.
SAUTCHUK, Jaime. Paulo Bertran: o cerratense. Goiânia: IDESA, 2012.


 

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