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Brasilete Caiado

 

Os muitos caminhos de passagem da história
~ Minhas memórias de Brasilete Ramos Caiado ~

 

Este texto é uma escritura porque sua textualidade é tecida pela memória, pela amizade e admiração que cultivei durante duas décadas por Brasilete Ramos Caiado. Fui sua aluna por duas vezes. A primeira quando fazia o antigo Ginásio, e, a segunda vez, quando fiz o curso de Letras na Faculdade de Filosofia da Cidade de Goiás. Na sala de aula, como aluna de Língua Inglesa, pude conhecer a professora que nos encantava por dominar um idioma estrangeiro. Aprender uma língua era acrescentar outros mundos ao nosso. E a professora, sabendo das grandes dificuldades de sua turma, nos lia as histórias de Shakespeare e Jane Austen em inglês e as traduzia dramatizando as cenas. Eram aulas inesquecíveis.

Da professora para a ativista do meio ambiente, para a atuante em prol da cultura e da educação, das minorias e do patrimônio histórico, foi o tempo de descobrir o quanto a Cidade de Goiás, sua terra natal, precisava de seu entusiasmo, de sua coragem e visionarismo para torná-la um lugar melhor de se viver. Nascida em 4 de setembro de 1931, criança ainda, Brasilete não viveu o trauma ocasionado pelas contendas políticas e projeto de descentralização de poder empreendido por Pedro Ludovico com a transferência da capital da Cidade de Goiás para Goiânia. Mas a memória dos pais e dos vila-boenses desse acontecimento marcou profundamente sua vida e suas escolhas para fazer soerguer, como gostava de dizer, a Cidade de Goiás. Ela não sofria a nostalgia dos tempos antigos, mesmo porque não os viveu. Nem queria retomar a condição de capital para a antiga Vila Boa. Pelo contrário, disse ela: “E aí é o que eu digo, a história passa por muitos caminhos. A mudança da capital foi benéfica pra Goiás, porque foi preservada essa arquitetura, essa riqueza arquitetônica nossa.” ¹ Brasilete percebeu que havia uma herança cultural possível de criar horizontes novos. E era o que poderia tornar a cidade um lugar de movimentação cultural, que pudesse gerar renda para as famílias; um lugar de boa educação para que os jovens não precisassem sair de suas casas, indo estudar em outros centros. Brasilete entendia que a Cidade de Goiás era o maior capital cultural do estado e que deveria usufruir dessa condição para melhorar a vida das pessoas.

Filha de Brasil Ramos Caiado e de Noêmia Rodrigues Caiado, que tiveram onze filhos, família tradicional e de história política em Goiás, Brasilete teve de sair da sua cidade para estudar. Morou no Rio de Janeiro, onde fez o curso superior de piano na escola de Música. Lá, também, licenciou-se em Letras. Saiu do país para aperfeiçoar seu inglês em Cambridge – Inglaterra, e em Michigan – Estados Unidos da América. Ficou longe de sua terra, entre Rio de Janeiro e exterior – 15 anos. E retornou em 1965.

Seu retorno é simbólico para a Cidade de Goiás quando consideramos outro retorno também simbólico, que é o de Cora Coralina em 1956. Duas mulheres fortes e denodadas voltam à sua terra, duas senhoras que vão contribuir para mudar o destino da cidade. Se Cora Coralina percebeu o potencial turístico e cultural da Vila Boa e chamou visitantes com seus poemas e seus doces feitos na Casa Velha da Ponte, Brasilete Caiado, com um olhar abrangente, voltou-se para a educação, o meio ambiente, a economia e os movimentos culturais. Esteve presente, e com atuação decisiva, na criação da Organização Vila-Boense de Artes e Tradições, que tem até hoje potência na preservação das tradições religiosas-culturais; na extensão do curso de Licenciatura Curta em Letras da UFG na década de 1970. Junto com Frei Simão Dorvi, padre dominicano radicado em Goiás, lutaram pela preservação de documentos e jornais de valor histórico, fundamentais para a história do estado de Goiás. Esse movimento resultou na Fundação Educacional da Cidade de Goiás, hoje nomeada de Fundação Frei Simão Dorvi, que guarda tesouros documentais da memória goiana. E essa Fundação ainda deu origem em 1980 à Faculdade de Filosofia da Cidade de Goiás, que se tornou um dos primeiros núcleos de origem da Universidade Estadual de Goiás. A Faculdade de Letras firmava com esteios definitivos o retorno do Ensino Superior à Goiás, um dos sonhos de Brasilete, que foi também a sua primeira diretora. E eu fui aluna da primeira turma do curso de Letras. Foi nesse tempo que nos aproximamos e nos tornamos amigas até o fim de sua vida.

O percurso de Brasilete Caiado é prodigioso no que fez pela Cidade de Goiás. Era uma mulher destemida, visionária, “enxergava longe”, como se diz aqui, adiante de seu tempo. Foi assim que, no início dos anos 1990, já se movimentava pela preservação do rio Vermelho, preocupada com a destruição das matas ciliares e com a queimada dos cerrados no mês de agosto. Arrogou a si buscar meios para combater os incêndios, criou a ACIF, Associação de Combate ao Incêndio Florestal, composta de voluntários; fez um seminário para discutir a situação do rio Vermelho. Estive junto com Brasilete na realização desse evento. Já tínhamos uma amizade afetiva, companheira e solidária naquilo que pretendíamos para o nosso lugar de viver. Especialistas convidadas e convidados vieram falar sobre o meio ambiente, sobre perspectivas para a cidade ancorada entre morros e dividida por um rio. Ao final, tivemos um documento, uma espécie de carta que foi enviada às autoridades. Mas as camadas ctônicas daquilo que envolve vontade política demoram a se mover e ela viu a enchente de 2001 que veio logo após a concessão pela UNESCO do título de Patrimônio Mundial, o qual talvez tenha sido a maior conquista liderada por Brasilete para a Cidade de Goiás. Anos antes, presidiu o Movimento Pró-Cidade de Goiás, responsável pela condução do processo do título de Patrimônio. Junto com as demais instituições, como IPHAN, Museu Casa de Cora Coralina, governos municipal e estadual e tantas outras mãos cidadãs da Vila Boa. E teve êxito. Esteve lá, em Helsinque, Finlândia, para escutar e receber a boa nova: a Cidade de Goiás tinha o reconhecimento do mundo de sua importância: era agora Patrimônio Mundial. Para ela, estava aí o soerguimento de sua cidade. Talvez tenha sido a melhor luta e maior glória dessa mulher que dedicou a sua vida inteira ao bem comum.

Um novo desafio veio logo depois do 16 de dezembro de 2021, dia festivo da concessão da láurea de patrimônio de toda a humanidade. Em 31 dezembro, o rio Vermelho transbordou como nunca se tinha visto no século XX. A força das águas destruiu casas e monumentos às suas margens. Mais uma luta foi posta a essa mulher extraordinária, vamos escutá-la nessa entrevista:

Nessas famílias conseguimos resgatar a autoestima, enquanto as autoridades estavam muito preocupadas, tinha um movimento ali quietinho trabalhando que estava ali sem ostentação, então nós nos dedicamos a essas oitenta e tantas famílias que haviam perdido a sua identidade. Tem várias pessoas de idade que perderam seus documentos, seu objetos. Nós tivemos depoimentos tristíssimos de pessoas que viram, hoje são viúvas… Aquele objeto, aquele bibelô que não vale nada pra ninguém, mas tem uma história entre ela e o marido e aquilo tudo foi embora nas águas. Nós tentamos com ajuda de psicólogos, fazer com que essa autoestima pudesse melhorar um pouquinho e sempre demos muito apoio às famílias nesse sentido, não importando as ruas, os prédios, as casas… As casas também tinham de ser recuperadas, mas o movimento se dedicou unicamente às famílias, ao ser humano, para que elas pudessem voltar às suas residências com o espírito mais alegre. Muito difícil, até hoje a gente sente, a marca ficou. O que regatar seria isso e nós estamos continuando neste trabalho de resgatar a identidade dessas famílias.²

O seu lado humano sempre presente no zelo com as pessoas. Diante de um desastre da natureza maltratada, enquanto corria-se atrás da recuperação dos monumentos, das casas e ruas destruídas, ela era a que estava atenta às pessoas que foram atingidas pela enchente. E com a delicadeza e olhar voltado a uma outra reconstrução, difícil, senão impossível, de ser feita: a identidade ferida por perdas irreparáveis de significados simbólicos que a compuseram em objetos e história feita ao longo da vida.

Brasilete tinha uma capacidade extraordinária de agregar pessoas. Não havia diferenças políticas, ela transitava em meio a todas as rixas partidárias. Se era por Goiás, dizia, sentava na mesa de adversários políticos e conversava cordialmente. Tinha na sua fala a essência da diplomacia, negociadora e delicada. Por isso, reuniu em suas lutas, que eram de toda a cidade, as mais diversas pessoas para trazer para Goiás o curso de Direito que daqui havia saído quando da mudança da capital. E veio, primeiro como extensão, depois, com mais cursos, para formar o Campus da Cidade de Goiás da UFG. A volta do ensino superior a Goiás, seja através do que são hoje a UEG e a UFG aqui, deve a Brasilete e não só a ela, a todas as pessoas tomadas por essa vontade e às demais que ela conseguiu sensibilizar, a sua existência na Cidade de Goiás.

De 1965 a 20 de setembro de 2003, Brasilete teve como horizonte fazer o soerguimento cultural de Vila Boa. Para isso, apoiou a criação do PROLER, Programa Nacional de Incentivo à Leitura da Biblioteca Nacional, com um comitê sediado no Museu Casa de Cora Coralina; criou a APROVI – Associação de Proteção à Vida, que tinha um leque expressivo de atuação, mas seu foco principal era o meio ambiente. Ajudou a criar a Cooperativa de Ensino – COOPECIGO, para que os estudantes tivessem alternativa acessível de estudo quando concluíssem o Ensino Fundamental e não necessitassem de mudar de cidade. Mobilizou os interessados na criação da Faculdade de Medicina, infelizmente, o projeto não foi à frente. Tantas outras ações tomavam sua vida e força, alegria e entusiasmo. Tudo fazia com muita intensidade e determinação, confiante que a Serra Dourada não era obstáculo. Era beleza a ser apreciada.

A vida foi curta para tanta vontade e sonhos de Brasilete Caiado. Logo depois de fazer 72 anos, no dia 20 de setembro de 2003, em uma viagem à Goiânia, – provavelmente com o carro cheio de documentos e projetos em prol de sua cidade e, com certeza, mimos para o seu afilhado, a quem chamava de “meu querido” – sua vida foi interrompida brutalmente por um acidente automobilístico. Se foi a cidadã vila-boense na véspera da primavera, com sua elegância e seus olhos azuis brilhantes, afável e polida, sobretudo, de espírito livre. Se foi a mulher que tinha a consciência ética de que, a cada manhã, precisava fazer a sua parte para que sua cidade preservasse seu passado com respeito, mas olhasse seu presente e seu futuro: gerando renda para seus cidadãos e cidadãs, dando um horizonte aos seus jovens. A cidade enlutou-se com sua morte, rendeu-lhe homenagens, nomeou espaço com seu nome. Suas lembranças permanecem no coração de muitos, que conviveu com ela. Seu exemplo segue vivo na vida de cada mulher que, com ela, acorda todos os dias com o propósito de fazer sua parte para que a Cidade de Goiás se torne um lugar justo e melhor para se viver.

 

¹ – Trecho de entrevista de Brasilete Caiado concedida à Profa. Dra. Isabela Tamaso em 2 de março de 2001, na Cidade de Goiás.

² – Trecho de entrevista concedida à Profa. Dra. Melissa Carvalho, 2002 (data aproximada), para a sua dissertação de Mestrado em Serviço Social realizado na PUC-RJ

 

Texto/pesquisa: Goiandira de F. Ortiz de Camargo
Livreira – Livraria Leodegária (Cidade de Goiás)
Março de 2022

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